Homem-primata, capitalismo selvagem.

23 de junho de 2009

Parabéns, Stuart Sutcliffe

Hoje é aniversário de Stuart Fergusson Victor Sutcliffe. Bem, seria se ele não tivesse morrido em 1962, com vinte e dois anos.

Você deve estar se perguntando: "Quem, diabos, é esse tal de Stuart Sutcliffe"? E se, realmente, você está se perguntando isso, sugiro que tome uma overdose de conhecimento e estude, estude muito, sobre os Beatles. Mas tudo bem, eu sou bonzinho, então vou dar uma aula sobre o assunto:

Em minhas andanças pela internet, acabei por descobrindo que hoje, se ainda estivesse vivo, Stuart Sutcliffe estaria completando 69 aninhos. O jovem Stu, apelido usado por John Lennon, era um artista, desde novo. Amava a pintura como sua vida. Influenciado por John, vendeu suas pinturas e equipou-se de um contrabaixo elétrico, entrando assim para os Beatles. A partir de então, o grupo formado por John, Stu, Paul, George e Pete Best, engrenou e começou a crescer. Em uma das viagens à Hamburgo, Stu conheceu a alemã Astrid Kirchherr, uma fotógrafa que começou a tirar fotos dos Beatles para promovê-los. Apaixonou-se, deixou os Beatles que seguiram em frente e morreu de hemorragia cerebral logo em seguida. Nunca foi um baixista comparável à Paul, mas sempre ficará na memória dos verdadeiros Beatlemaníacos.

Se deseja mais detalhes, sugiro que assista ao filme: Backbeat. Este narra o começo dos Beatles, com foco no ex-baixista.

Imagine.

Imagine. Apenas...imagine. Um dia, você, senhor ou senhora decente, pai de família, acorda cedo e vai trabalhar. Melhor, melhor! Vai comprar pão, alí, do lado, no pólo capitalista do país. Todo sorridente, com seu dinheiro na mão, atravessa a fronteira e ruma à padaria de seu gosto. De preferência, aquela lá nos cafundós de Berlin Ocidental,porque lá "o pão é gostoso e quentinho". Pois bem, nada te impede de ir andando, não é? Aproveita e dá uma olhada na vegetação, nas roupas, sente o ventinho frio...e pimba! Lá está você na padaria, mais rápido do que julgou ser possível. Sorri e pede seis pãezinhos para sua família, principalmente para aqueles dois lindos pimpolhos na sua casa. A atendente sorri e lhe dá o produto fumegante. Você paga e tem uma agradável surpresa: o pão está mais barato! O dia poderia ficar melhor? Sorridente, volta para casa. Encontra um colega no caminho, se abraçam, conversam e quando você olha no relógio, já está na hora das crianças acordarem. Despede-se com pressa e sugere que o amigo vá passar um tempo em sua casa, mas logo sai em disparada pelas ruelas capitalistas. De tão preocupado com a hora, não vê a nuvem de poeira à sua frente, não ouve os sussurros assustados das pessoas ao seu redor. Apenas continua seu caminho até...até...aquilo.

Imagine. Apenas...imagine. Você, preocupado com seus filhos e seu amor em casa, o pão nas mãos...e centenas, se não milhares de soldados socialistas fazendo um...um MURO? Um maldito muro no meio do caminho! A poeira que se levanta é sufocante. As pessoas estão assustadas. Até os soldados estão assustados. Alguns desertavam e saltavam a base do muro para o lado preferido. Outros apontavam as armas para a população. Você, a coragem latente em seu peito, avança alguns metros, tentando voltar para casa, mas é repelido. Tenta argumentar, mas a resposta é um tiro próximo ao pé. O que fazer com a família? Aquela muralha se extendia até onde a vista não enchergava! Como voltaria para casa? Quem cuidaria da família? Quem pagaria as contas? Você não aguenta e investe contra os soldados querendo voltar para casa, para os amorosos braços de seus parentes...

Imagine. Apenas...imagine. A escuridão aumenta em seus olhos, seu estômago arde, você sente o chão te engolir e não vê mais nada. Apenas pensa em seus filhos. Como eles sofrerão.


Singela homenagem do autor ao vigésimo aniversário da Queda do Muro de Berlim.

Incerteza.

A incerteza é o que nos move. Com certeza. Nunca temos certeza de nada. Ou de tudo. Não tenho certeza. Nunca sabemos se vamos chegar aonde desejamos, quando desejamos, do jeito que desejamos e as chances são bem pequenas de nada dar errado. Não sabemos se viveremos tempo o suficiente ou tempo demais, não sabemos se saberemos, em um futuro próximo, diferenciar os homens dos animais. Não sabemos se existe fim no universo. Não sabemos como impedir a morte que tanto nos assusta. Não sabemos se conseguiremos terminar uma tarefa começada ou se teremos vontade de começar a tarefa inacabada. Não sabemos se vamos pegar uma gripe, perder a voz, nem conseguir levantar. Não saberemos se um dia o planeta que chamamos de nosso acabará. Não sabemos se nossos sonhos serão impedidos por coisa grande, pequena ou coisa nenhuma.Não sabemos tudo com certeza. Não sabemos nada com certeza.

Falando assim, até parece que eu odeio as coisas ilógicas que acontecem e teimam em acontecer no nosso dia-a-dia. Pelo contrário. Eu acho tão bom ter sempre pequenas surpresas no dia. É gostoso você acordar de manhã e dar de cara com um passarinho na beirada da sua janela, te olhando daquele jeito inocente, a cabecinha virando, analisando-o. É gostoso sorrir por coisas simples que algumas pessoas consideram bobas e outras nem notam! É gratificante ser o bobo alegre que sorri ao sentir o sol e mesmo assim ama o frio. É ótimo sentar em um ônibus e pensar nas coisas da vida enquanto ouve Queen. É, a incerteza nos motiva e torna a vida mais...vivível.

4 de junho de 2009

Crônicas de uma classe - Parte V

Eu pude contar um minuto no relógio para que a sineta estridente tocasse. E mais trinta segundos para que a primeira menina entrasse: uma garotinha de cabelos crespos, óculos desproporcionais ao rosto pequeno e arredondado de roupas simples e mochila rosa. Respirei fundo quando ela sentou-se à frente, cruzou os braços à altura do peito e fixou seus olhos (aumentados desproporcionalmente) em mim. Eu pigarreei e ela nem piscou. Desviei os olhos mas podia nota-la ainda a me encarar. Quando ia me apresentar à pequena, salvo pelo gongo, outras 10 crianças entraram sem nem olhar para mim e sentaram-se nos lugares que queriam.

Eu nunca fui bobo, nunca mesmo. Sabia quem seria problema desde o primeiro momento. Pus-me de pé, afastando a cadeira e estremeci por dentro vendo toda aquela pirralhada reunida, conversando, rindo e olhando para mim. Pigarreei novamente. Fui ignorado. Arrumei os óculos e dei um tapinha na mesa. Ignorado. Franzi o cenho e disse:

-Senho...hum...crianças! De frente! – Minha voz tinha um poder avassalador, pelo que pude ver e, como em um colégio militar, todas as crianças viraram para frente, me olhando de olhos arregalados. Eu contive um sorriso. –Pois bem, serei seu novo professor, meu nome é Carlos, mas podem me chamar de Professor, Senhor, Carlos ou Senhor Pimentel. Entendidos? Entendidos, crianças? – Elas bradaram: “Sim, professor”. Eu sorri. Se continuassem assim, seria fácil lidar com elas. –Ótimo. Bem, para começar, quero que se apresentem, um por um, aqui na frente. Digam seus nomes, o que querem ser quando crescer e podem voltar. Hum...quem quer ser o primeiro? –Como não houve resposta, corei brevemente. Havia preparado uma aula mais animada, ou o que eu achava que era animada, antes da aritmética.

Foi no meio de minhas divagações, enquanto olhava ansioso para aquele projeto de turma que um braçinho se ergueu na primeira cadeira do meio. Eu olhei-a, a menina dos óculos. Sorri desesperado e desci do palanque.

-Pode vir. –Chamei-a, encostando-me na parede, uma prancheta em mãos, a caneta flutuando sobre o papel, pronto a anotar tudo. E ela continuou flutuando...e flutuando. Desviei o olhar para a menina que estava de pé, olhando a todos, as bochechas coradas e o olhar ansioso. –Hum...pode começar. Qual é seu nome? –Indaguei, forçando um sorriso. Era difícil. Eu não era bom em sorrisos.

A menina me olhou e corou ainda mais. Foi então que sua boca se mexeu e nenhum som saiu. Ela ficou ainda mais vermelha, deu uma tossidinha e disse sem parar para respirar:

-Meu nome é Prudence... – E então veio uma onda de risadinhas daquela turma de macacos. Eu os olhei, severo, calando-os. Fui até ela que parecia querer chorar, abaixei-me, muito, para ficar na altura dos olhos dela, como se fazem com os cachorros. –É um belo nome, Prudence. Você sabia que uma banda muito famosa e querida tem uma música com seu nome? É o nome mais bonito que já ouvi. –Ela sorriu, envergonhada.

-A banda é...The Beatles, senhor, a música é Dear Prudence. Minha mãe gostava muito deles. –Ela parecia mais relaxada. E eu assustado. Ela era uma pequena gênia. Que sorte, uma da minha espécie! Eu sorri, dessa vez menos amarelo.

-Ótimo, ótimo, você conhece suas origens, já é um avanço. O que deseja ser? –Perguntei, anotando seu nome com uma estrela, destacando-o.

-Ah, eu quero ser cientista. –Eu quase ri, mas me contive.

-É uma boa escolha, Prudence. Agora, já que terminou, vamos deixar os outros tentarem também. –Indiquei a cadeira dela e me sentei à mesa, anotando “Cientista” ao lado de “Prudence”. Seguido dela veio Roberto, que queria ser astronauta, junto com Rodolfo, Luis, Gustavo, Ricardo, Maria, Larissa, Lívia, Lídia, Débora, todos com o mesmo desejo: “Ser grande”. Sério, eu sou meu herói, tive a vontade de estrangular aqueles meninos sem senso de individualidade e nem imaginação para fazer piadinhas, mas me controlei e respirei fundo, anotando pacientemente.

30 de maio de 2009

Crônicas de uma classe - Parte IV

Como havia dormido daquele jeito, de janelas abertas, acordei as cinco junto com os primeiros raios de sol. Os raios de sol das férias. Os raios de sol que fariam muitas pessoas sorrirem, mas que me fizeram bufar. Começaria hoje, daqui a quatro horas, a ensinar para crianças. Meu estômago revirou por um segundo e eu me levantei. Estava sem fome, mas após sair do banheiro comi minha tigela de cereal matinal com leite. Arrumei-me e me joguei no sofá, esperando o tempo passar.

E ele passou bem rápido. Em um piscar de olhos eu já estava atrasado para a aula. Levantei-me e corri para a moto, acelerando-a e pegando um atalho até a escola. Sim, eu estava ansioso. Na verdade, apreensivo. Mais como ficam os condenados à morte caminhando pela milha verde. É, era assim que eu sentia. Tentando adiantar o inevitável para que acabasse logo.

Demorou certo tempo para achar a escola, ela localizava-se mais para o meio rural da cidade, o que era estranho. Era um belo lugar, todo pintado de branco com o nome escrito em diversas cores na parede principal. Parei no estacionamento, a escola aparentava calma. Aquela calma que os tubarões têm antes de destroçar suas vítimas. Desliguei a moto, peguei meu capacete e me encaminhei à secretaria. Na verdade, era um hexágono de tijolos no meio do pátio e com uma placa dizendo que era ali a secretaria.

Entrei sem bater, já que a porta estava aberta. Havia uma atendente com cara de Chacrete aposentada. Contive meu riso perante a figura parada nos anos sessenta e apresentei-me.

-Sou...

-Carlos Pimentel, eu sei, o menino gênio e a próxima vítima, ok, assine aqui. Aqui. Aqui. E aqui. Isso, bom garoto, sua sala é a 43, tome seu horário e não desperdice meu tempo. Tchauzinho. – Foi como falar com o Furacão Katrina. Ela me passou uma folha em que eu assinei rapidamente várias vezes e em seguida me enxotou da sala com um papel de horários de aulas. Em menos de três minutos estava do lado de fora, no frio, olhando o papel em minhas mãos.

Enquanto andava devagar, olhava o horário. Era estranho, eu devia dar aulas até de Educação Física! Eu nunca fui bom naquilo! Eu tinha sorte de não ter isso na faculdade. Respirei fundo e fui para a sala 43, sentando-me à mesa, esperando pela hora do sinal.

Crônicas de uma classe - Parte III

Os dias se passaram rapidamente demais. Em um piscar de olhos a última semana de aula antes do recesso estava ali, na minha frente. E junto com ela as brincadeiras de final de ano.

Era bem comum, enquanto caminhava pelo campus, notar rolos de papel higiênico adornando as árvores e mechas de cabelos ao chão – frutos de uma promessa para passar de anos, provavelmente. As mangueiras de emergência estavam todas abertas, fazendo com que saltássemos por entre poças. Professores e zeladores corriam por toda a Universidade, tentando conter os ânimos-pré-férias dos alunos. Eu, obviamente, repudiava aquilo. Mas não falava nada. Quanto mais idiotas, menos concorrência no futuro. Era o que mamãe dizia antes do acidente, me deixando sozinho no mundo. Piscando furiosamente, sempre me controlava. Nunca havia derramado uma lágrima sequer pela morte de ninguém.

Na última semana houve uma pequena festa no último dia, mais especificamente. Não liguei para ela e fui embora, me preparar em casa para o último dia de aula. Estava tão distraído que quase arranquei tinta de um carro ao meu lado.

O dia foi uma droga. Agi maquinalmente e terminei todas as tarefas em menos de três horas. Deitei-me na cama ainda de dia e fiquei a olhar o teto com o estômago revirando lentamente. No dia seguinte começava o martírio. Aulas para a terceira série, crianças, pequenos demônios sem asas. Adormeci naquela posição.

Crônicas de uma Classe - Parte II

A sala arredondada tinha inúmeros quadros de personalidades famosas na faculdade por méritos – ou deméritos, como os esportistas, em minha opinião – diversos. Troféus, medalhas e certificados preenchiam as estantes também arredondadas para adequarem-se ao formato da sala. Tirando-se isso, ao final do aposento encontrava-se o tucano-de-óculos-e-reitor-Eduardo, sentado em sua cadeira estofada de couro, as mãos sobre a mesa. Ele sorriu ao me ver e indicou a cadeira. Pigarreei e sentei-me, a mochila sobre o colo e as mãos nos braços da cadeira. O silêncio que nascera à minha chegada culminara naquele momento em que eu o quebrei.

-Pois então, senhor?

-Ah, o senhor fala! Que agradável, deveria usar mais sua voz. Pois bem, para quê, exatamente, veio aqui, senhor Pimentel? –Perguntou, cruzando os braços e recostando-se na cadeira confortável.

-Hum...bem, o senhor me chamou, não é? Queria me dar o tal prêmio e provavelmente preferiu dá-lo longe dos colegas de classe com o intuito de não causar-lhes inveja, estou certo?

-Temo em dizer que está redondamente enganado, senhor. Eu o trouxe aqui para lhe dar, sim, seu prêmio. Mas para evitar...bem, sugiro que o veja antes de dizer qualquer coisa. –Disse, sorrindo terrivelmente e me passando uma pasta, que peguei, sem desviar os olhos dos dele. Ele era estranho, não sabia se me agradava ou não, era um mistério completo para mim. Desviei os olhos para a pasta, abri-a rapidamente e vi o que havia dentro. Apenas uma folha, quase em branco, exceto por poucas linhas aqui transcritas em íntegra:

É com orgulho que eu, Eduardo D’Amour, concedo ao aluno Carlos Pimentel seis meses como professor da turma de terceira série da escola primária “Santa Paz” com o intuito de um aprendizado firmado nas bases sólidas da amizade e amor infantil como prêmio por excelência no curso de Direito.

-Pois bem, você começa no primeiro dia de férias. –Sorriu-me o velho senhor. Olhei-o incrédulo e minha mente já formara uma imagem concreta para aquele homem. Era um sádico maldito louco para estragar quaisquer chances que tivesse de me tornar o melhor advogado do país e ainda levar todas as minhas férias. Eu ri, levemente aturdido.

-Bem engraçado, senhor, mas...hum...como? –Gaguejei. Sinal de fraqueza. Nada bom.

-Ora, o senhor ri e...gagueja! Está me surpreendendo, senhor Pimentel. –Ele sorriu, ainda mais loucamente que o normal. –Não é uma piada, meu caro. É seu prêmio. E...hum...o senhor precisa aceitar.

-Por quê? –Perguntei, atrevido.

-Ora, porque eles já te esperam lá. Se não for, crianças ficarão sem professor. –Ele sorriu, dessa vez aparentando mais preocupação.

-Senhor! Por favor, eu vou perder todas as férias com pirralhos. Eu preciso estudar! –Supliquei, levantando-me.

-Sente-se, senhor Pimentel. –Eu o obedeci. Sua voz obrigava-me. Pelos próximos trinta minutos ele me convenceu dizendo-me que faria bem ao meu currículo, que se eu não fosse os pirralhos ficariam sem estudo e que eu já sabia a matéria o suficiente por mais cinco anos de faculdade se me interessasse. Novamente com aquele sorriso ele se levantou e se despediu, teria que pegar a filha na futura escola em que eu lecionaria. Engoli em seco. Eu não tinha escolha. Era o novo professor dos pirralhos.